Brutalidade, Transformação e o fantasma de Estaline
Antes de escrever este post li e comentei os textos do Miguel portas e Daniel Oliveira acerca desta efeméride, não concordando com tudo gostei de ambos e desde já cito as seguintes palavras do Daniel
E é aqui que chego à segunda parte. Mesmo moralmente, mesmo politicamente (já para não dizer do ponto de vista histórico), talvez tenhamos sempre de analisar um acontecimento da magnitude da Revolução de Outubro (o mais importante acontecimento histórico do século XX, a par com as duas guerras mundiais) pelas suas consequências mais profundas e não apenas pelas mais directas. Para lá da violência e da ditadura soviética, a revolução russa teve um significado muito mais profundo. Foi, de facto, a primeira vez na história que os trabalhadores, ou, para simplificar, os mais explorados entre os mais explorados, foram os protagonistas vitoriosos. O que veio depois sabemos. Mas o que aquela revolução provocou em todo o Planeta foi qualquer coisa de absolutamente inédito na história da humanidade. A esperança e optimismo que ofereceu a milhões de trabalhadores miseráveis permitiu uma capacidade de organização e de luta completamente novas. E isso, conjugado com a mutação que o Capitalismo viria a sofrer no pós-guerra e o simultâneo aumento de influência da URSS graças à sua vitória militar, acabaria por mudar toda a relação de forças nos confrontos sociais.
Se durante tanto tempo os trabalhadores conseguiram ir conquistando direitos, isso não se deveu a qualquer súbita generosidade do capital. Claro que a abundância do pós-guerra facilitou. Mas a organização dos trabalhadores e o temor pelo comunismo (que chegou a ser em quase todo o Ocidente uma corrente política fortíssima) foram decisivos. E basta olhar para a situação actual, em que vivemos em permanente crescimento económico e em sociedades de abundância mas os trabalhadores perdem direitos todos os dias e retrocedem décadas, para perceber o que significou aquela revolução em todo o Mundo. Não há como domesticar o mercado se o poder do mercado nada tiver a temer.
O que celebro aqui hoje não é, na realidade, a chegada do comunismo a terras russas. O que se passou nos 70 anos seguintes à revolução na URSS foi suficientemente trágico para tal não merecer grandes festejos. O que celebro aqui hoje é esse momento em que tudo pareceu possível e o que essa simples esperança fez pela dignidade de milhões de homens e mulheres em todo o planeta.
Dito e muito bem isto, chateia-me confesso, as críticas que geralmente suscita a Revolução, o seu carácter brutal e a tese do mal já inscrito na sua génese.
Os processos de transformação social não são uma matiné dançante
Todos os processos radicais de transformação social, não apenas as Revoluções, são brutais. Sem teorizar muito mais dou três exemplos de processos de transformação social que não resultaram directamente de revoluções:
- Introdução do Welfare state no Reino Unido e Europa ocidental no pós-guerra;
- Abolição da Escravatura, ou melhor, subordinação da Aristocracia Escravocrata sulista e exportadora de matérias-primas, face aos Industriais do Norte interessados no fomento do mercado interno (EUA);
- Modernização da Rússia no século XVII sob Pedro, o grande.
No primeiro caso foi preciso para erguer o chamado “Estado Social” um longo processo de luta das classes operárias e suas organizações no decorrer do século XIX (sobretudo segunda metade) e duas guerras mundiais, sobretudo a segunda, e a consequente eliminação do Nazi-fascismo. Isto não foi pêra doce, na II Guerra caíram 50 milhões de seres humanos e durante 5 anos nos países em guerra a vida quotidiana das populações foi subordinada ao objectivo de a vencer… Os Trabalhistas Ingleses em 45 derrotam Churchil, o herói da guerra, nas eleições exactamente porque quem a combateu, o povo Inglês, o fez na esperança que depois da guerra um novo mundo, mais justo e solidário iria ser construído. Verdade se diga que em larga medida o conseguiram… O facto de ter sido o exército vermelho a chegar a Berlim, Tito a libertar a Jugoslávia e resistência a libertar Paris, não foi indiferente para que no resto da Europa Ocidental se tenham seguido políticas semelhantes…Mas como tudo o que vale mesmo a pena o preço a pagar não foi pouco…
No segundo caso para que os EUA adoptassem, sem hesitações, uma política de fomento da sua indústria e abolissem a escravatura (uma espinha na garganta da republica desde a sua fundação), foi preciso uma brutal guerra civil, de todas as que travaram a que mais Americanos vitimou, que só foi vencida pelo norte após todo o sul ter sido posto a ferro e fogo, literalmente!!! A marcha do General Sherman de Atlanta até ao Mar, glorificada em canção, foi a de um anjo vingador que destruí tudo à sua passagem, qual Atila que por onde passa nem a relva volta a crescer.
Finalmente, na própria Rússia o processo de modernização e a inclusão sócio-politico-tecnica do Império Russo na Europa foi feito não só através de guerras com outras potências, mas com a eliminação, física, de todos os obstáculos à mudança, isto já para não falar no que custou ao povo Russo construir uma nova capital gloriosa nas margens do Báltico (ainda por cima aquilo era um pântano, eu imagino quantos é que lá ficaram…)
Os custos que se pagaram valeram a pena?
Se ao menos tivesse sido na Alemanha…
Por ter sido na Rússia, país pobre e atrasado, a Revolução ganhou um carácter despótico a que poderia ter escapado se tivesse ocorrido na Alemanha… É uma tese corrente, tenho sérias dúvidas… Se porventura a revolução tivesse eclodido na Alemanha o mais provável não teria sido um socialismo mais puro e imaculado, mas antes uma carnificina brutal que deixaria os combatentes da guerra dos trinta anos a corar…
Em certo sentido até eclodiu e o resultado do seu sufocamento foi o Nazismo, imaginem agora o que teria sido necessário para ela triunfar, que meios seria necessário ter empregue para derrotar a Social-Democracia aliada à aristocracia prussiana? O que teria sido preciso fazer para eliminar a oposição das multidões de combatentes ressabiados com a derrota Alemã… E está-se mesmo a ver a Burguesia Inglesa, Francesa, Norte-Americana, sobretudo a Norte-Americana, a assistir de balcão à Revolução Alemã Triunfante, estou mesmo a ver os EUA que entraram na guerra (e pouco sofreram, ponto importante pois estavam frescos para mais acção) para garantir que as dívidas dos Franceses e Ingleses tinham seriam pagas a estender o tapete vermelho a uma Europa Bolshevique…
A Rússia foi invadida por exércitos de 16 diferentes nações e os Brancos foram apoiados vigorosamente depois de muito sangue a escorrer pela valeta, prevaleceu a teoria do cordão sanitário, só rompido após a segunda guerra.
Face a uma revolução triunfante de Moscovo a Berlim não haveria cordão sanitário que aguentasse, como diria o outro, seria o “mata, mata”. Os horizontes do possível seriam muito mais largos, a força emancipadora muito mais irresistível, mas não se pense que iríamos escapar à Brutalidade, ela seria muito maior, como maior seria o desafio à ordem estabelecida. As amolgadelas que um combate ainda mais duro que o que, de facto, se seguiu a Outubro iriam provocar num projecto emancipatório desta envergadura são desconhecidas, mas que seriam muitas e bem profundas não tenho dúvidas…
Meios e Fins
Há alturas de ruptura dos velhos equilíbrios em que um novo reajuste das relações socias não é possível sem um grande grau de violência, nessas alturas já que de uma forma ou outra o preço a pagar será elevado porque não lutar por um mundo novo??? Mal comparado, foram mortos nos anos 50 mais de 500 mil Indonésios pela ditadura de Suharto e para quê??? O que é que o mundo daí recebeu se não miséria e opressão (que o digam os timorenses entre outros…)… Durante o “Terror” foram mortas em França (incluindo as vítimas da guerra civil e não apenas da guilhotina) cerca de 500 mil pessoas e uns anos antes nos EUA cerca de 10% da população (leais à coroa Britânica) saiu do país devido à vitória dos Patriotas… Não direi que foi justo os exércitos Republicanos do ano II (esse farol que para sempre iluminará a humanidade, desculpem mas não resisti…) terem dizimado a Vendeia a fim de eliminarem a oposição do exército Real e Católico ao novo regime, mas pergunto: A eliminação do feudalismo, a noção que no povo reside a soberania, a democracia, a liberdade enquanto valor fundamental, a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, aliás, o próprio conceito de cidadania, a modernidade e tudo o que isso acarreta, foram conquistas desse ANO II e da Revolução Americana, que não foi pouco sangrenta. Será isto tudo comparável com o que as chacinas que Franco ou Suharto produziram?
Pois é, os fins justificam os meios? Os fins serão todos iguais? Quem pode dizer que não há fins pelos quais vale bem mais a pena lutar e morrer do que outros? Sobretudo quando já sabemos que de uma forma ou outra iremos lutar e morrer…
Talvez desistir… Ou entre a realidade e as boas intenções
Ou talvez face aos desafios em vez de responder o melhor seria desistir à partida? Talvez em vez de tomar a Bastilha à procura de armas para se defenderem do exército real que se aproximava, os cidadãos de Paris deveriam ter deixado o Rei dissolver a Assembleia Nacional e deixar o projecto de uma constituição ir pelo cano… Ou talvez aquando da divulgação do manifesto do duque de Brunswick (que prometia arrasar Paris e os seus habitantes se não se curvassem perante o Rei e a Nobreza que havia emigrado) em vez de seguir Danton "Para vencer os inimigos, necessitamos de audácia, cada vez mais audácia, e então a França estará salva". deveria o povo Francêse os seus líderes terem cedido e pedido desculpas… Em 1918 acossada por inimigos internos e externos que respostas poderiam ter dado os Soviets e os Bolsheviques, a magnanimidade da Comuna? A descentralização anarquizante dos revolucionários espanhóis em 36? Ou pura e simplesmente desistir de transformar o mundo e entregar a Russia a um qualquer Kornilov?
Se eu vi mais longe, foi por estar de pé sobre ombros de gigantes.
E é neste ponto que vou buscar a frase final do post do Miguel Portas, "Tenho os meus demónios, como a Igreja tem a sua Inquisição. Preciso deles e dos seus pesadelos, para nunca esquecer. Que ao menos nos sirvam depois de mortos…", como é óbvio Estaline não foi um pára-quedista que surgiu do nada e roubou a brilhante revolução a São Trotsky e São Lenine, é inquestionável que as chacinas dos Jacobinos não foram actos de justiça, nem a guilhotina atingiu apenas tiranos e reaccionários, então como saímos do dilema… Estará para sempre a humanidade condenada a cometer actos hediondos para alcançar um pouco mais de justiça e liberdade, as revoluções forjadas a ferro e a sangue irão sair sempre deformadas devido ao seu duro parto??? Em certa medida isso é inevitável, mas há a frase do Miguel e esta de Isaac Newton “Se eu vi mais longe, foi por estar de pé sobre ombros de gigantes.” E aqui está o busílis da questão. Temos grandes gigantes que nos carregam, o ponto de que partimos hoje em direcção a uma vida mais decente é incomparavelmente superior ao ponto de que Jacobinos e Bolsheviques partiram e a eles devemos isso. E podemos ver mais longe, que tiremos das suas gestas heróicas as devidas lições, para saber os riscos que enfrentamos, para evitar os erros já cometidos, para perceber que o que hoje nos parece o mais certo, até inevitável, amanhã poderá ter custos incalculáveis… Não estamos condenados a percorrer o mesmo caminho, precisamos de inteligência, criatividade, muita coragem e confiança no poder e generosidade inigualável de um povo organizado e em luta, contudo, também não tenhamos ilusões… Podemos gerir a Brutalidade e Violência de forma melhor, mas dela não poderemos fugir até porque não a provocando ela não deixará de vir ter connosco…
Qu'un sang impur
Abreuve nos sillons !
Marselhesa
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