segunda-feira, 23 de abril de 2007

25 de Abril

Aproveito esta altura para reeditar um texto escrito por mim, pelo David e pelo Pato, acerca do 25 de Abril, foi publicado naquilo que julgo ter sido a última edição do Rastilho, Pasquim dos jovens do PSR...


O 25 de Abril de que não nos falam


Só há liberdade a sério quando houver
liberdade de mudar e decidir
quando pertencer ao povo o que o povo produzir

Sérgio Godinho, Liberdade

Mais um 25 de Abril, já lá vão 27 anos de democracia e comemorações, no entanto que democracia é esta em que vivemos?

Quem olhasse um pouco para o passado certamente não deixaria de admirar-se com uma situação no mínimo caricata. Como é que um povo que sofreu tanto com a ditadura do Estado Novo, que lutou tanto para obter o direito a eleições livres e democráticas, encara muitas vezes esse direito como uma obrigação? É que não são raras as vezes que a Comissão Nacional de Eleições apela ao voto não tanto como um direito, mas mais como um dever. As razões para esta inversão do discurso são claras – há um nítido afastamento entre os cidadãos e os representantes que estes elegem, e a comprová-lo nada melhor que os elevados números que ultimamente se têm registado na abstenção (preocupante é que grande parte dessa abstenção ser composta por jovens).

Será que estamos condenados a viver neste clima de apatia e conformismo, numa democracia que todos os dias definha um pouco, em que somos autênticos espectadores de um big brother político? Na nossa opinião não, aliás nem sempre foi assim...

O 25 de Abril não foi propriamente uma parada militar em que pouco tempo depois se passou, num clima de cravos e abraços, para um parlamentarismo estéril, tal qual hoje o conhecemos. Os factos contam outra história, após 48 anos de ditadura, de censura, de tortura e perseguições, em que uma meia-dúzia de famílias decidiam o destino deste país, o 25 de Abril foi a alavanca que impulsionou um enorme Movimento Popular que surpreendeu o próprio MFA (Movimento das Forças Armadas).

Durante um ano e meio houve uma ampla participação política de tod@s, inclusivamente o futebol era relegado para segundo plano. Isto porque neste período as pessoas sentiam que eram elas que construíam a sociedade em que viviam. Por mais estranho que hoje possa parecer, nessa altura quem não tinha casa, fez o que o bom senso mandou, ocupando casas vazias. Formaram-se comissões de moradores, ocuparam-se palacetes e até clubes de ténis para se transformarem em creches e colectividades. É nesta altura também que surgem as cooperativas de habitação. Após a fuga d@s latifundiári@s para o exterior (Brasil e Espanha sobretudo) com as terras por cultivar, dá-se o fenómeno das ocupações de herdades e posterior criação das cooperativas. No sector financeiro e em muitas indústrias o estado central, sob a pressão dos trabalhadores, nacionaliza estes sectores após a fuga de capitais e dos patrões para o estrangeiro. Na maioria dos casos a gestão passou para as mãos das comissões de trabalhadores.
No entanto, muita gente não achou piadinha nenhuma ao facto de ser “o povo quem mais ordena”. Com este panorama social vão entrar em choque três modelos de sociedade antagónicos. A democracia popular, o modelo dos países de leste e a democracia representativa tal como hoje a conhecemos.

Este conflito agudizou-se ao longo do tempo, de um lado aqueles que defendiam o poder popular (no fundo o sinónimo de democracia, Demos/povo Cratos/poder), ou seja tudo aquilo que é de interesse da comunidade é decidido por essa comunidade e portanto defendiam o aprofundamento do poder das comissões de moradores e trabalhadores e das assembleias nos quartéis, levando a reboque (embora com muitos atritos) aqueles que queriam transformar Portugal em mais um satélite da União Soviética. Do outro lado estavam desde os saudosos do Salazarismo até alguns ditos “socialistas” defendendo um estado de coisas muito semelhante ao que temos hoje.

Este combate foi visível nos atentados bombistas do MDLP (movimento terrorista de direita, que tinha como guru Spínola), da FLA e FLAMA (movimentos independentistas dos Açores e da Madeira com ligações à CIA) e na destruição das sedes de inúmeros partidos de esquerda verificada no norte do país e nas regiões autónomas. Ou por outro lado, no cerco ao Patriarcado de Lisboa e ao 1º Congresso do CDS realizado no Porto, no assalto à embaixada de Espanha contra a ditadura Franquista realizado por grupos de extrema-esquerda. O próprio parlamento chegou a ser cercado pelos trabalhadores da construção civil em greve a que se juntaram membros de cooperativas do Alentejo e forças populares.

Este conflito acabou por ter o seu desfecho no 25 de Novembro, a esquerda militar que dava cobertura às acções do Movimento Popular foi derrotada e com essa derrota arrastou o próprio Movimento. As terras foram devolvidas aos latifundiários, as comissões de trabalhadores perderam o seu poder e salvo raras excepções as comissões de moradores não existem... Portugal tornou-se numa democracia ocidental, versão chunga, à imagem de uma França ou Alemanha engravatadas...

Águas passadas não movem moinhos, mas as presentes muito menos. E há no mínimo que pensar se as actuais regras da sociedade são as que queremos e se é possível alterá-las, ou construir outras completamente diferentes. Por enquanto, citando José Mário Branco, (...) e sempre que Abril aqui passar dou-lhe este farnel pró ajudar..., e assim damos um farnel quando defendemos uma reforma fiscal que redistribua a riqueza de forma justa (Portugal é o país da Europa em que o fosso entre os mais ricos e os mais pobres é maior), quando lutamos por um emprego com direitos contra o trabalho precário, ou quando defendemos o inconformismo, a participação e a honestidade, contra a apatia e a actual política espectáculo, abstencionista e demagoga!

segunda-feira, 9 de abril de 2007

Revolução? Bolivariana?

O Fenómeno Chavista e o socialismo do século XXI

Pessoal, finalmente terminei o meu txt sobre a Venezuela e o Chavéz, aqui vai ele de enxurrada! Tenho ouvido críticas aos tamanhos dos Posts... Têem razão, são muito grandes... Aconselho a copiarem para word e imprimirem é o que eu faço qd quero ler textos mais longos da net...

Porquê falar nisto

A nossa quarta conclusão é a de que a política concreta, aquela que afecta a vida de milhões e milhões de cidadãos, é refém dos interesses do capital financeiro. Os governos, mesmo os de correntes moderadas, têm revelado a sua incapacidade para romper com esta realidade. Compete a quantos têm clara consciência disto lançarem, nos seus países e solidariamente, as bases de uma nova política que relance a esperança num mundo melhor.[1]

A missão traçada pelo povo venezuelano e o governo revolucionário que lidera o presidente Hugo Chávez não se conclui com as transformações institucionais e a implementação faseada de um modelo de desenvolvimento alternativo. Trata-se de consolidar a revolução política, social, económica e cultural, para assim acabar com o modelo do capitalismo selvagem e favorecer a criação colectiva de uma sociedade verdadeiramente democrática, solidária, sustentável e soberana, centrada nos valores nacionais e da América Latina, os ideias bolivarianos, a justiça social e os direitos humanos efectivos.
É por isso que avança a transformação das relações de poder e a autodeterminação cultural, política e económica do nosso povo em transição intuitiva ao novo socialismo do século XXI [2]

Sorrateiramente... Sem ter sido convidado... De início quase ignorado, quer pelo estado-maior do império, ou nos debates do movimento alterglobalista, “el processo”, o processo revolucionário bolivariano de há uns tempos para cá parece que entrou definitivamente nos cálculos de todos quantos desejam travar o pesadelo neo-liberal e reconstruir um caminho alternativo, socialista, para o mundo. De facto, relendo a passagem acima transcrita do documento fundador do bloco, que outro fenómeno tem de então para cá, lançado mais bases de esperança numa nova política que rompa o ciclo a que temos estado sujeitos???
A quase 20 anos de distância da queda do muro, no início de uma nova era em que se anuncia a destruição do estado social, em que se relegitima a tortura como método de investigação policial e a lei do mais forte impera sem máscaras na política internacional a reconstrução de alternativas ideológicas, sociais e políticas ao sistema dominante é mais do que necessária, determinante para vencer a barbárie, o irracional, que cada vez mais invade todos as áreas da sociedade.
Mais, passado o banho maria dos anos 90 em que mais uma vez o fim da história foi decretado, eis que ela regressa na alvorada deste século já com algumas coisas para contar, da blitz krieg rumsfeldiana engolida nas areias do deserto da babilónia e repelida pelas montanhas da fenícia, ao redespertar rubro da américa latina. À redescoberta que mesmo aqui ao pé, logo depois dos pirinéus, o povo organizado é capaz de derrotar propostas de destruição do trabalho com direitos e de dizer não, por mais bem empacotada, explicada, defendida por sábios e todos os partidos da situação, a esta Europa que nos querem impor neo-liberal.
Isto para não falar de outros exemplos um pouco menos empolgantes, Lula(PT) lá e Bertinoti(RC) cá, ambos com um bom pedigree de esquerda, apoio de fortes movimentos sociais, mas políticas um tanto ou quanto insatisfatórias para o volume de expectativas que foram gerando antes de se porem ao leme do aparelho de estado (sendo verdade que estes partidos devem ser julgados não apenas pelo desempenho no destino mas também pelo que fizeram ao longo do caminho)... O chamado movimento anti globalização teve o seu apogeu em Génova[3] e os Fóruns, que são isso mesmo, fóruns, o que não é nada pouco, mas por si só não produzem política e movimento capaz de alterar a relação de forças.

I think it will be useful if the Global Justice movement—and there are many different strands in it—came and saw what’s going on here. What’s the problem? Go into the shantytowns, see what the lives of the people are, see what their lives were before this regime came into power. And don’t go on the basis of stereotypes. You cannot change the world without taking power, that is the example of Venezuela. Chávez is improving the lives of ordinary people, and that’s why it’s difficult to topple him—otherwise he would be toppled. So it’s something that people in the Global Justice movement have to understand, this is serious politics. It’s pointless just chanting slogans, because for the ordinary people on whose behalf you claim to be fighting getting an education, free medicine, cheap food is much much more important than all the slogans put together.[4]

Alterar a relação de forças, alargar os limites do possível, eis os pontos centrais na estratégia política dos que, como nós, se confrontam com poderes vastamente superiores e hostis. A experiência Venezuelana é um exemplo de como isso é exequível. De como é possível, nomeadamente: eliminar a iliteracia; universalizar os cuidados de saúde prestados; fazer frente ao império, às suas guerras de domínio pelo médio oriente ou à tentativa de dominação económica da américa latina através da ALCA. E “não só resistir” mas contrapor, dar saída, dar alternativa: contra a ALCA, a ALBA; contra a miséria e continuísmo as Missões e uma Quinta República.
A Revolução Bolivariana não apenas anuncia, concretiza. Para além disso, determinante na avaliação que faço do governo venezuelano, da direcção política da Revolução Bolívariana, é a sua preocupação contínua e vincada com o empowerment da população, acima de tudo daquela que sempre foi excluída do processo de tomada de decisões públicas, da preocupação em fomentar a democracia participativa/directa para além do jogo parlamentar e de criar órgãos de poder popular. Neste virar do século o governo Venezuelano, o fenómeno Chavista foi o que deu origem ao mais consequente, palpável e com provas dadas[5] desafio à ordem Imperial/Neo-liberal.
O objectivo deste texto é lançar um pouco de luz sobre este original processo, demasiadas vezes analisado de forma superficial e preconceituosa. Conhece-lo melhor é importante para enriquecer a nossa discussão acerca dos rumos do Bloco, do país e do mundo, conhece-lo melhor é determinante para construir um pensamento crítico sobre as organizações que pretendem derrubar o Império e dar uma resposta socialista à ofensiva neoliberal.

Breve Historial

Quando Carlos Andrés Pérez enviou a Força Armada à rua para reprimir aquela explosão social e se dá um massacre, nós, os militares bolivarianos do MBR-200 percebemos que tínhamos ultrapassado o limite e decidimos que era preciso ir às armas.[6]

A 27 de fevereiro de 1989 em Caracas dá-se o motim conhecido como Caracazo, em resposta a uma série de medidas draconianas (aumento do preço dos transportes, combustíveis, etc...) impostas pelo governo do então presidente Carlos Andrés Pérez, a população, sobretudo dos “Barrios” que cercam a capital, desce em fúria ao centro da cidade, expressando o seu descontentamento em actos de vandalismo e pilhagem generalizada, a resposta não se faz esperar e o exército é chamado a reprimir os protestos. Nunca houve uma contagem oficial do número de vítimas da repressão, grupos de defesa dos direitos humanos calculam que cerca de 3000 pessoas foram mortas pelo exército[7].
É no rescaldo destes acontecimentos que a 4 de fevereiro de 1992 Chávez e outros militares do movimento MBR-200(Movimento Bolivariano Revolucionário 200 – duzentos pelo bicentenário do nascimento de Bolívar) em articulação com sectores civis lançam uma rebelião com o objectivo de derrubar o governo e convocar uma assembleia constituinte. A rebelião falha e muitos dos revoltosos são presos, no entanto ganham reconhecimento público e o gesto é olhado com admiração por parte da população. Uma das condições que Chavés pediu em troca da rendição foram 5 minutos de tempo de antena na televisão, a sua mensagem ficou gravada na memória dos venezuelanos.
Saídos da prisão (em 1994) Chavéz e restantes companheiros descartam os planos insurreccionais, mas não a tentativa de refundar a república. Percorrem o país de lés a lés a aprofundar e propagar a ideia de lançar uma Assembleia Constituinte, vão, também, lançando as bases de uma nova organização popular de massas. Nos primeiros dois anos recusam-se a concorrer às eleições chegando a apelar à abstenção, a partir de 1996 decidem tomar o caminho das urnas.

Vamos à Presidência da República para convocar o Poder Popular, a Assembleia Constituinte.[8]

Em 1998 Chavéz apoiado pelo Movimento V República (fundado por si e outros camaradas militares), PCV (Partido Comunista Venezuelano), PPT (Pátria para Todos), PODEMOS e outras organizações políticas e sociais vence as eleições contra o candidato da situação[9]. É convocada uma Assembleia Nacional Constituinte, os movimentos sociais organizam-se e entregam as suas propostas, a nova constituição, considerada a mais progressista de toda a América latina, é aprovada em referendo a 15 de Dezembro de 1999.

A constituição constitui a República em Estado democrático social de direito e justiça, e estabelece modelos alternativos à democracia representativa e ao neoliberalismo, cujas insuficiências têm permitido a consolidação de uma sociedade marcada pela opulência, a exclusão e a pobreza.[10]

Ao contrário de muitas outras experiências, na Venezuela a direcção do movimento é consequente com as suas palavras, assim, numa altura em que o preço do Petróleo não superava os 30 dólares, com um estado inoperante e o país em crise, o Governo lança o Plano Bolívar 2000.

Há dez anos saímos para massacrar esse povo; agora, vamos enchê-lo de amor, vamos preparar o campo de acção, vamos atrás da miséria, o inimigo é a morte. Vamos enchê-los de rajadas de vida em vez de rajadas de morte[11]

Às várias componentes das forças armadas foi pedido que elaborassem planos de acordo com as suas especialidades e recursos, que respondessem às necessidades da população. Foram montados hospitais de campanha que prestaram cuidados de saúde a quem antes nunca tinha tido essa oportunidade, em conjunto com a população construíram-se casas e outras infra-estruturas, estradas foram executadas com custo muito menor do que seguindo métodos mais tradicionais, as populações em zonas remotas foram servidas por aviões e helicópteros fornecidos pela Força Aérea. Esta campanha cívico-militar criou fortes ligações entre as populações assistidas e o exército, passados poucos anos esta relação seria decisiva na derrota do golpe reaccionário.
É logo por esta altura que se fomenta a criação dos Círculos Bolivarianos, pequenas estruturas organizadas localmente, são fóruns de discussão teórica, prestam apoio às populações e à sua auto-organização, nomeadamente na definição do modo como é gasto o dinheiro público nas suas comunidades (ao estilo do orçamento participativo de Porto Alegre).
Em 2001, a assembleia nacional aprova 49 leis (reforma agrária, reforço do controle do estado sobre a indústria petrolífera, protecção da pesca artesanal, ordenamento sustentável do litoral, impulso das cooperativas…) operacionalizando os princípios mais gerais estabelecidos pela constituição.
Chegados a este ponto a elite venezuelana e os seus mestres em Washington decidem que é tempo de acabar com a festa, afinal o homem não era só conversa… Entre os muitos factores que contribuíram para tomarem a decisão de derrubar o governo destaco os seguintes: O fim do regabofe na PVDSA[12] (que embora pública, na prática era um feudo dos seus gestores de topo e do capital internacional a eles ligado); a perspectiva de reforma agrária e, mais do que os últimos, a crescente sensação de que os pobres, os até aí excluídos, os trabalhadores, os mestizos dos Barrios estavam a invadir a cena política, a fazer valer as suas posições com uma autoconfiança crescente. No fundo o Governo Bolívariano não era o seu governo, não defendia os seus interesses, até o facto de Chaves ser mestiço os incomodava, à elite de pele bem mais branca…
Os média lançaram uma barragem de propaganda negativa non-stop (de tal forma foi maciça que muitas das mentiras e argumentos avançados por esses cães de fila do sistema é repetida por muitos camaradas do Bloco). São organizadas marcha após marcha contra o governo, a televisão reporta essas manifestações até à exaustão, silenciando as que também ocorrem em defesa “d´el Processo”. As panelas que batiam no Chile exigindo a demissão de Allende agora pediam o derrube de Chavéz… Esta fronda é composta no essencial pelo grande capital nacional e internacional, os média, a burocracia sindical corrupta e importantes sectores da classe média/média-alta (que constitui a base social deste movimento).
A situação económica não era a mais animadora, no início de 2002 o nível de apoio a Chavéz atinge o valor mais baixo de todo o seu mandato. È sob este pano de fundo que a reacção sente que o fruto está maduro e organiza o Golpe que é desencadeado em 11 de Abril de 2002. O documentário já várias vezes exibido em actividades do BE “The Revolution will not be Televised” dá uma boa visão acerca da orquestração do Putsh.
Tratou-se de uma tentativa de derrube pela força de um governo democraticamente eleito, em que o presidente que chegou a ser investido foi o presidente da confederação de empresários, uma espécie de Francisco Van Zeller venezuelano, o governo, parlamento e todas outras instituições foram dissolvidas, membros do Governo e do parlamento foram perseguidos e muitos chegaram a ser presos(Chavéz inclusive…). Na tentativa de abafar os protestos pró Chavéz mais de 50 pessoas são mortas.
Mas a Revolução já tinha lançado raízes e não seria qualquer vendaval que a derrubaria… A frieza com que o regime golpista foi encarado por parte da maior parte dos governos[13], nomeadamente na América Latina, as diferenças que começaram a surgir entre os sectores golpistas mais ultras e os moderados, acima de tudo, a resposta popular em aliança com as forças militares mais comprometidas com o bolivarianismo derrotaram o golpe que nem chegou a durar três dias.
Mas a reacção não se deu por vencida, os valores em disputa eram demasiado elevados, logo no final de 2002 é desencadeada uma greve com o objectivo de paralisar a economia e de provocar o derrube do governo… Greve não será a palavra mais adequada para descrever o sucedido, lock-out, é a palavra mais correcta uma vez que foram os patrões que encerraram as fábricas e foram os donos que fecharam os estabelecimentos comerciais, na PVSDA foram os quadros de topo que efectuaram, literalmente, actos de sabotagem para paralisar o sector petrolífero. Mais uma vez a tentativa foi derrotada, em muitos locais os trabalhadores forçaram a reabertura das fábricas. A capacidade de resistência popular e o sangue frio demonstrado pela liderança bolivariana conseguiu ultrapassar as dificuldades resultantes do açambarcamento dos bens de consumo básicos e da sabotagem efectuada no sector petrolífero.
Os danos causados na economia foram graves, mas por essa altura o preço do petróleo começou a subir a pique (relembremo-nos que a guerra do Iraque foi desencadeada em Março de 2003). Em 2003 são lançadas as “Missões”, possíveis também graças à parceria estabelecida com Cuba, um exemplo de sucesso desta parceria é na área da saúde. Neste momento à milhares de médicos cubanos na Venezuela e dezenas de milhar de cidadãos venezuelanos vão a Cuba para receber tratamento especializado, no âmbito da missão “Milagre”. Mas as missões não se restringem à saúde indo desde a educação, defesa dos direitos dos indígenas até à economia.

(...) as missões significam a refundação do aparelho estatal como estrutura organizativa, para incorporar plenamente o povo organizado ao novo estado social e democrático em revolução. Igualmente, as missões têm permitido avançar substancialmente na transformação dos valores próprios da sociedade capitalista, e no resgate dos valores de cooperação solidária e organização colectiva para a autodeterminação das comunidades.[14]

Todas estas missões e projectos não são implementados de modo paternalista, burocrático nem clientelísticos, mas sim mediante uma participação cidadã activa; sem exclusões partidistas. As comunidades locais, os bairros, os comitês locais de saúde, a intervenção da vizinhança na distribuição do orçamento comunal, os círculos bolivarianos, o crescimento impressionante das cooperativas, o aumento da acção dos sindicatos nos problemas laborais, a actividade autónoma das organizações indígenas; tudo isto são manifestações desta revolução participativa e maciça, são realidades a que se está incorporando o povo venezuelano pela primeira vez na sua história.[15]

MISIÓN VUELVAN CARAS

1-.Cambiar el modelo económico rentista -reproductor del atraso y la exclusión social- con el esfuerzo supremo de pueblo y gobierno revolucionario, para transformar radicalmente el conjunto de relaciones de producción de nuestra sociedad y desterrar para siempre la pobreza de Venezuela.
3-.Garantizar la participación de la fuerza creativa del pueblo en la producción de riqueza, procurando una calidad de vida digna para todos los venezolanos.
4-.Garantizar la independencia, soberanía y desarrollo de la producción nacional, a partir de la creación y mantenimiento de NDE.

La República Bolivariana de Venezuela a través de la creación de las Misiones Sociales aquí desarrolladas, busca alcanzar el objetivo fundamental establecido en el Plan de Desarrollo Económico y Social de la Nación 2002-2007, el cual es la justicia social, destacando la acción comunitaria en la gestión pública.

Es el Desarrollo Endógeno una de las prioridades de la Agenda Bolivariana, que significa desarrollo por dentro, desde adentro (modelo: empresas familiares, microempresas, unidades cooperativas).

En el caso específico de la Misión Vuelvan Caras, como lo mencionamos anteriormente, se busca cambiar el modelo al variar las relaciones de producción que permitan el nacimiento de una economía autogestionada, cooperativa, de conformidad con lo establecido en la Constitución de la República Bolivariana de Venezuela.[16]


Em 2004 é feita nova tentativa para depor Chavéz, recorrendo desta vez a um mecanismo previsto na nova constituição que possibilita que todos os detentores de cargos eleitos possam ser destituídos por referendo a meio do mandato. A oposição recolhe as assinaturas necessárias (existindo fortes dúvidas se, de facto, conseguiram recolher os 3 milhões necessários) as forças Bolivarianas aceitam o desafio e o resultado é que 59% dos eleitores rejeitam a demissão de Chavéz. São realizados outros referendos direccionados aos governos locais, na maior parte convocados por Chavistas que pretendem provocar a resignação de políticos ligados à oposição (em vários casos cidadãos eleitos pelo bloco Bolivariano e que com o aprofundar da revolução passaram para a oposição).
O final de 2006 é rico em acontecimentos. A 3 de Dezembro há eleições Presidenciais (nas eleições anteriores, para o congresso, a oposição não apresenta candidatos numa tentativa de descredibilização do processo eleitoral), Hugo Chavéz vence com 62.9% dos votos. Logo na noite eleitoral e posterior tomada de posse é reiterada a orientação socialista e anti-imperialista a seguir pelo governo. É neste contexto que se lançam várias iniciativas de grande alcance.
Criação de um novo partido, a partir dos “Comandos Miranda”(grupos de base que têm vindo a levar as campanhas eleitorais e referendárias para o terreno), vários grupos de activistas bolivarianos e dos partidos pertencentes ao bloco bolivariano (MVR, PCV, PPT, PODEMOS e mais de 20 outros pequenos partidos). O objectivo é dotar a revolução de uma organização democrática, mas articulada e forte socialmente, nesse sentido os partidos existentes podem se juntar ao novo movimento ou não, mas aqueles que escolherem a última alternativa serão excluídos do governo. Este processo ainda está na sua fase inicial, o nome sugerido para este novo partido é PSUV, Partido Socialista Unificado da Venezuela.
Foi anunciada a nacionalização de empresas (ligadas ao capital Norte-Americano) na área da electricidade e telecomunicações.
O congresso venezuelano, reunido na principal Praça de Caracas, adoptou um pacote de medidas que dá amplos poderes à presidência. O objectivo é permitir margem de manobra ao governo para tomar decisões como as descritas no parágrafo acima e aprofundar a “Revolução”.
O governo tomou a decisão, completamente legal, de não renovar a licença de um dos canais privados de televisão venezuelanos, a RCTV (Radio Caracas Televisión). Este é um dos canais que tem estado em guerra aberta contra o governo, não apenas criticando, mas mentindo, difamando e incitando todo o tipo de actividades (inclusive violentas) que provoquem o derrube do governo, foi uma das instituições responsáveis pelo golpe falhado de 2002[17].


Desde já duas conclusões

Chávez tem entendido o poder potencial das mulheres como protetoras primárias do processo. Quatro meses de lobby contínuo, permitiu que as mulheres conseguissem a Constituição que desejavam. Entre suas disposições anti-sexistas e anti-racistas, concebe o trabalho do lar como económicamente produtivo, reconhecendo o direito das donas-de-casa à previdência social. Não surpreende que em 2002 as mulheres de orígem africano e indígena liderassem aos milhões que desceram desde os morros para acabar com o golpe de Estado (liderado pela elite quase toda branca e a CIA), para salvar sua Constituição, seu presidente, sua democracia, sua revolução.[18]

Independentemente das piruetas teóricas que queiramos dar algumas evidências são incontornáveis. Primeiro, o governo bolívariano está intimamente ligado aos movimentos populares progressistas nos bairros, fábricas, sociedade em geral. Tendo tido até um papel fundamental no fomento desses movimentos, é o governo dos pobres e dos anteriormente excluídos, assume-se enquanto tal e é reconhecido pela população enquanto tal, quer pelos seus apoiantes quer pelos seus adversários. Como acima foi referido, uma das razões mais determinantes para ter sido alvo de um combate sem tréguas por parte da elite do país foi o facto desses sectores terem identificado o governo com os sectores desfavorecidos e o próprio governo como fonte de empowerment dessas populações antes desprezadas. A rejeição de Chavéz por parte dos sectores dominantes não se prende apenas com as medidas particulares que o governo toma e põe em causa os seus privilégios, é mais profunda e prende-se com a rejeição da orientação estratégica seguida pelo Governo Bolívariano. O mesmo se pode dizer da adesão das massas populares à Revolução Bolivariana e ao socialismo do século XXI.
Segundo, o impacte destes acontecimentos extravasa completamente as fronteiras da Venezuela, pelo simples exemplo que este percurso dá, sobretudo, às populações Latino Americanas. Isto para não referir as políticas lançadas pela direcção bolivariana que explicitamente procuram expandir o fermento revolucionário, políticas essas que discutirei mais adiante. Por agora o importante é frisar que a experiência Chavista faz a demonstração prática de que é possível desenvolver políticas que almejem uma mais equitativa redestribuição da riqueza, que é possível atacar a miséria nas suas várias facetas (económica, social, cultural), que é possível resistir aos ataques da classe dominante e derrotá-los. A vitória do dia 13 de Abril de 2002 sobre o putsh direitista, foi a maior vitória que o movimento popular latino-americano, até mundial, teve desde a entrada dos sandinistas em Manágua! Depois das “veias abertas da América-Latina”, dos regimes militares que só recuaram de forma negociada nos anos 80, depois da derrota de Allende e dos Sandinistas, depois da derrota dos vários momentos de guerrilha (sendo as FARC a excepção), da imposição do consenso de Washington nos anos 90 pelas recentes democracias, o moral popular não era propriamente estratosférico… A revolução bolivariana, com todos os defeitos que possa ter, devolve aos milhões de Sul-Americanos desmoralizados com a experiência traumática dos últimos 20-30 anos aquilo que é o ponto de partida para qualquer tentativa de mudar o status quo, o combustível imprescindível para qualquer movimento que queira transformar a realidade, a revolução bolivariana devolve a Esperança!!! A Esperança que um outro mundo é possível e que até se anda a fazer alguma coisa por isso e que quem tenta matar esse novo mundo não consegue!
A vitória de Morales na Bolívia e de Correa no Equador, o regresso, que não deixa de ter valor simbólico, de Daniel Ortega na Nicarágua, a situação explosiva no México, o novo fôlego da revolução cubana, e o enterro da ALCA[19]. Todo este novo vento que começa a varrer a Pátria de Bolívar que se estende das margens do Rio Grande à Patagónia seria possível, com esta extensão e intensidade, sem essa ponta de lança que é o auto-intitulado estado bolivariano da Venezuela? Mais uma vez, apesar de todos os hipotéticos erros, o fenómeno chavista não apenas abriu todo um novo campo de possibilidades e alargou os limites do possível na Venezuela, mas por todo o continente.

Piratas das Caraíbas, o Eixo da Esperança[20]

No campo internacional, o governo bolivariano propõe aos povos da América Latina a integração política e cultural solidária em alternativa à integração económica capitalista, afim de se construir um eixo continental de desenvolvimento que permita a superação da dependência estrutural, a cidadania democrática plena de todos e todas, a nossa articulação em torno às identidades populares da América Latina e a criação efectiva de uma ordem multipolar e justa, baseada em relações de mútuo intercâmbio.[21]

O movimento progressista está a progredir pela pátria de Bolívar não apenas devido ao exemplo. O apoio económico e político prestado por Cuba e a Venezuela à Bolívia é um factor decisivo, embora por si só insuficiente, para implementar as medidas pelas quais os movimentos sociais bolivianos já muito lutaram. As missões têm sido estendidas para lá de Cuba e da Venezuela, nomeadamente aos países do Caribe. A proposta de lançar a ALBA um sistema de trocas orientado para o benefício mútuo das populações dos países intervenientes e não para os benefícios financeiros que possam advir dessas trocas. Simplesmente a oferta de colaboração com qualquer governo que prossiga políticas que rompam com o consenso de Washington é por si só de importância capital para que esse tipo de políticas se espalhe.
No entanto, a solidariedade internacionalista não se resume à cooperação intergovernamental, nesse sentido o governo Bolivariano tem também apoiado movimentos sociais por todo o continente, exemplo disso é o fornecimento de combustível de aquecimento a instituições sociais Estado Unidenses que trabalham nos bairros mais degradados, nomeadamente junto da comunidade Afro-Americana. O anúncio desta medida foi feito numa palestra dada por Chavéz na igreja de Riverside em Nova York a convite de vários lideres da comunidade afroamericana (como Jesse Jackson e Dany Glover) e sindicatos. Outro exemplo é o da organização em Caracas do primeiro encontro de solidariedade e resistência dos povos indígenas e dos camponeses. Poderiam ser dados mais, relembro aqui apenas a organização do último Fórum Social Mundial em Caracas.
O papel da Venezuela no mundo não se resume às fronteiras da América-Latina. As tomadas de posição pública contra a política imperial de Washington, a troca de galhardetes com a administração Norte-Americana, os Discursos contudentes de Chavéz em vários fóruns internacionais (veja-se o exemplo do discurso proferido na ONU…) e a ameaça de expulsão do embaixador israelita da Venezuela aquando da invasão do Líbano têm, mais do que qualquer outra coisa, uma dimensão simbólica, mas não deixam de ser elementos galvanizadores para todos/as quantos combatem o império por este mundo fora.
Mais discutida tem sido a política de aproximação a outros estados que contestam a hegemonia Norte-America, refiro-me, nomeadamente a países como a China, Bielo-Rússia e Irão. Aqui há que distinguir vários planos. Em primeiro lugar parece-me acertada a estratégia de estreitar laços com quem pode barrar os planos para “um novo século XXI americano”, é não apenas desejável, mas necessário para que “el processo” prossiga que a Venezuela não esteja dependente, a nível comercial e outros, apenas de países dominados politicamente por Washington. Além do mais, a lógica seguida tem ido para além dos meros acordos bilaterais, a recente cimeira dos países não alinhados em Havana, no final do ano passado, é exemplo desse esforço.
Desta forma a estratégia Imperial de denominar certos estados como “estados párias” (os chamados “rogue states”) e pô-los numa espécie de quarentena internacional, no fundo a velha teoria de “dividir para reinar”, cai por terra. Foi, também, por não conseguir isolar completamente o Irão no palco mundial que os EUA ainda não lançaram sobre esse país um ataque militar. Visto sob este prisma o abraço dado por Chavéz a Mahmoud Ahmadinejad, não pode, de forma leviana, ser considerado como apenas “apoio a um facínora”.
De qualquer das formas, o estreitar de relações e a reconstrução de um movimento de não-alinhados, não implica o apoio acrítico a regimes como o Chinês ou Bielorusso. Sem dúvida, Chavéz, devia ser mais cauteloso nas afirmações que faz aquando das visitas a esses países.

Populismo

Yo no juego con el pueblo venezolano, sus sentimientos o con su emoción, ¡yo vivo com ese sentimiento!, ¡soy parte de ese sentimiento!, y junto a todos ustedes lucho para hacer realidad la esperanza nacida y el optimismo que ahora nos baña.[22]

É talvez o que mais se ouve quando se fala de Hugo Chavéz, contudo para saber até que ponto o fenómeno aqui em causa é populista e sendo, até que ponto isso limita/condena a Revolução ao insucesso é necessário discutir-se, mesmo que de forma breve, o que se entende por populismo.
Antes de mais direi que as organizações, lideres, de natureza populista têm um discurso fortemente emocional, na procura da empatia e identificação com os sectores mais desfavorecidos da população, ou que numa dada conjuntura, não sendo os mais desafortunados, são alvo de uma regressão acentuada do seu nível de vida. Esse discurso demagógico traduz-se no concreto em políticas do tipo paternalistas/caritativas que podendo, nos melhores dos casos, atenuar o sofrimento dos “pobrezinhos”, ou do “homem comum”, ou das “pessoas simples”, não ataca os mecanismos que perpetuam essa situação, até porque o objectivo, consciente ou não, não é o da emancipação popular, antes a manutenção do movimento popular num estado de fidelidade canina ao “grande protector”, ou “campeão do homem comum”.
Péron e o Peronismo é um destes casos, mesmo assim Péron quando no poder ainda tomou algumas das tais medidas atenuadoras, um dos seus sucessores, Carlos Ménem, apenas utilizou o discurso para chegar ao poder, uma vez lá seguiu a cartilha neo-liberal sem tirar nem por… O fenómeno Fátima Felgueiras, Valentim Loureiro e Isaltino são também casos de estudo. Não saindo do nosso rectângulo, Sócrates quando cortou alguns dos privilégios à classe política, como forma de legitimar a sua política de ataque total ao estado social deu-nos um bom cheirinho do que é o populismo.
Portanto para se definir como populista esta ou aquela medida, ou a natureza de uma dado movimento, tem de se ir para além do tom do discurso… Porque é inegável que para um intelectual europeu de classe média, como é o caso da maioria dos que lerem este texto, a postura, algumas das referências, o tom do discurso e até o background profissional de Hugo Chavéz remete para uma certa mitologia de coronel tapioca à sombra da bananeira. Contudo, é fácil de concordar, que essa é uma imagem, no mínimo superficial. Para além do discurso há que, acima disso, descobrir o sentido das medidas implementadas e da estratégia seguida pelo movimento em estudo.
Ora, as políticas implementadas e o seu sentido é claramente emancipatório, não se pretende um povo agradecido e subserviente, reforça-se a sua capacidade de actuação autónoma e auto-confiança, a prioridade dada à educação e alfabetização demonstram-no tal como tudo o que acima já foi exposto. Outro bom sinal é a concordância que existe entre o discurso e a prática, as promessas e compromissos tomados são respeitados e mesmo que os mais ambiciosos sejam impossíveis de atingir no curto prazo (como o da criação de um bloco político Latino Americano semelhante ao sonhado por Bolívar), vêem se passos dados no sentido de alcançar esses objectivos.
Voltando à linguagem, tod@s sabemos que para a nossa mensagem chegar às mentes da população e provocar reflexão, identificação, acção, ou pura e simplesmente, discussão, no fundo, para que ela conte, é necessário antes de mais que seja perceptível e que sejam estabelecidos pontos em comum entre as várias partes em diálogo. Assim sendo, no país das Miss Universo e das famosas telenovelas (aquelas mal dobradas do início da TVI) à que adequar o discurso. Para objectivos semelhantes ele não tomará a mesma forma em Paris, Caracas ou Lisboa. Isto não significa termos de limitar o discurso e referências ao mínimo denominador comum, desta forma não seria possível evoluir, a mestria de comunicação de Chavéz está em conseguir captar a atenção e empatia, não deixando de introduzir sementes de reflexão. É interessante analisar a evolução dos termos e conceitos utilizados ao longo destes anos, o socialismo, embora referido, não ocupava o lugar central que tem vindo a ocupar no léxico Bolivariano dos últimos tempos, veja-se o desafio lançado para a construção do Socialismo do século XXI.
A evolução do discurso, sustentado pela realidade vivida no terreno, revela o que tem sido o progresso deste processo. Como se vai conquistando espaço para romper cada vez mais barreiras, como são sustentados os passos dados, como cada avanço da revolução serve de apoio a outros novos avanços.

Se queremos salvar o nosso povo da pobreza, da miséria, da exploração e contribuir para a salvação do mundo da destruição da vida no planeta, descartemos o capitalismo. Não há outro caminho. Tem-se tentado caminhos mistos, intermédios, como o capitalismo humano. Essa é uma grande farsa: capitalismo humano não há, é como dizer do diabo que há um diabo santo ou um santo diabo. O único caminho que o nosso povo tem para sair do buraco onde há séculos fomos enterrados, é o caminho do socialismo, que devemos inventar nós próprios aqui: o socialismo à venezuelana, um socialismo adequado ao tempo em que vivemos.[23]

Desafios

Contudo, todas as rosas têm espinhos e o fantasma populista não nos abandona tão facilmente. Primeiro, é verdade que a Revolução acaba por estar muito dependente da figura do seu líder, que por muitos é idolatrado como um santo, de forma quase mística. A inexistência de movimentos sociais sólidos aquando do início do processo, não sendo responsabilidade da direcção bolivariana pode condicionar as suas acções. A vontade de seguir em frente e aprofundar o processo com uma base social muito dispersa, pode resvalar numa obediência cega ao líder providencial e produzir uma deriva autoritária até agora não manifestada.
Segundo, o aparelho de estado ele próprio, não sei se sustentará as medidas, nomeadamente as missões que têm vindo a ser implementadas, correndo-se o risco de muitas delas não passarem de medidas had oc, que não alterem, de forma sustentada, a natureza das relações sociais e económicas de forma a eliminar o flagelo da miséria e a posição subordinada de grande parte da população. Mesmo assim, as medidas já tomadas não podem ser apagadas e nada poderá ser como dantes na Venezuela…
Terceiro, a própria flutuação do preço do petróleo pode condicionar as políticas seguidas.
Mas a política não se faz com as condições ideais, faz-se com as que a realidade fornece e a inexistência dos referidos sólidos movimentos não pode ser desculpa para a inacção. Existindo uma forte vontade de mudança latente na maioria da população não existia organização ou objectivo político que polariza-se essas forças de forma a conseguir-se operar uma transformação. Ora, o projecto bolívariano deu resposta a esse vazio político e foi capaz de polarizar forças suficientes para desencadear o impressionante processo de transformação social que decorre na Venezuela e alterar, de forma determinante, a relação de forças. Para essa polarização ser possível a própria figura de Chavéz foi decisiva e ainda é. Acaba assim por ser uma vantagem e não um handicap, ela só se torna potencialmente perigosa na medida em que o próprio processo é bem sucedido e ao se prosseguir a estratégia revolucionária esse potencial perigo é atenuado, uma vez que implica a criação de organizações sociais (movimentos, partidos…) fortes e bem enraizadas no tecido social. A recente decisão de criar um partido que una todas as correntes bolivarianas vem exactamente nesse sentido.
Se nos lembrarmos da História descobrimos que todos os movimentos, revolucionários ou reformistas, que produziram transformações radicais na sociedade acabam por gerar e ser conduzidos por líderes míticos, Lénine também tinha os seus altares (literalmente), as grandes revoluções socialistas do nosso século todas geraram os seus ícones, de Ho Chi Min no Vietnam a Fidel Castro em Cuba, o movimento pelos direitos civis teve Martin Luther King e o que dizer de Ghandi????
Porque, aqui, as palavras polarizar e focar são decisivas... Por maior descontentamento social e vontade de empreender acções radicais que exista se não existirem um ou dois objectivos facilmente identificáveis e elementos polarizadores da acção (e aí os símbolos, incluindo os líderes são essenciais, mas também a existência de movimentos minimamente disciplinados) pode-se até conseguir abalar, por vezes derrubar o governo existente, mas não substituí-lo por um novo tipo de poder, basta olhar para o que se passou na Argentina em 2001, no Maio de 68, ou com a Revolução Espanhola[24].
A existência, por si só, de partidos organizados e com tradição de esquerda, no mínimo radical-reformista, apoiados por fortes movimentos sociais, também não significa que uma vez atingido o poder consigam operar alterações significativas na vida social, económica, política. Os recentes eventos no Brasil e Itália são paradigmas disso mesmo. Daí o papel central que joga a táctica e estratégia política nos caminhos que a História toma, para o bem e para o mal.
A questão da transformação do aparelho de estado é decisiva, mas é também de difícil resposta, aliás nenhum movimento por mais revolucionário e por melhor estratégia que tenha tido deu a este problema uma resposta totalmente satisfatória, não há soluções ideias, há as melhores possíveis ou as menos más, uma vez ao leme as hipóteses de falhar são muitas, mas pior é conscientemente abstermo-nos de influir no rumo a seguir ...
Há duas questões decisivas aqui a fazer, primeiro, é se dadas as circunstâncias as decisões tomadas pela direcção da Revolução bolivariana têm sido as mais consequentes com os objectivos a que se propôs[25]? Se há quem ache que não, pergunto-me então porque é que em mais nenhum lado se conseguiu fazer tanta diferença... Segundo, qual deve ser o papel dos Revolucionários face ao processo e à sua direcção? E aqui autonomia e pensamento crítico não são certamente sinónimos de desconfiança complacente....

Revolução?

Tiene que haber una revolución política; tiene que haber una revolución económica también, pero la esencia de la Revolución es lo social, la conformación de una nueva sociedad.[26]

Se entendemos Revolução num sentido estritamente insurreccional, não me parece correcto empregar o termo para descrever o processo em curso na Venezuela. Apesar dos duros confrontos que já ocorreram entre as forças populares e a reacção, a elite ainda detém uma grande fatia de poder quer na economia, quer nos mass media. A propriedade privada dos “grandes meios de produção” foi condicionada mas não abolida. E é bom não esquecer que o estado Venezuelano é dos maiores fornecedores de petróleo aos EUA.
No entanto, vejamos, as Revoluções, os grandes levantamentos de massas que até hoje operaram transformações radicais na sociedade e na forma como é gerida a propriedade, não foram desencadeados pelo desejo de qualquer directório partidário. Nos casos em que os tais levantamentos foram bem sucedidos coube às direcções não o papel de despoletar a tempestade, mas sim de saber aproveitar os ventos da melhor maneira. Ou dito de outra forma, uma vez iniciadas as insurreições e protestos radicais que conseguiram derrubar o poder existente, estes grandes movimentos populares só conseguiram constituir-se como alternativas sustentáveis ao “establishement” quando apresentaram objectivos/palavras de ordem radicais, mas polarizadoras, congregadoras da maioria social e quando estes mesmos movimentos formavam um bloco minimamente articulado e coordenado. Ora o papel das direcções revolucionárias é, na minha opinião, dar instrumentos aos movimentos para que nessas situações de irrupção popular se obtenham essas duas condições fundamentais: objectivos fortes, claros e coordenação entre os vários sectores que se opõe ao regime existente.
Situações como as genericamente enunciadas a cima não são frequentes, e as bem sucedidas ainda menos, as Revoluções, ditas, Socialistas do século XX vitoriosas ocorreram em conjugação com lutas pela independência nacional ou em momentos de grande fragilidade do sistema capitalista (como a revolução Russa no rescaldo da primeira guerra).
Assim sendo, parecem-me pouco honestas certas críticas apontadas ao processo venezuelano e sua direcção, não julgo que a estratégia a seguir deva ser a de implementação do comunismo de guerra e de corte de relações com todos os estados não revolucionários (ou seja todos os actualmente existentes…), limitando-se as relações internacionais a efectuar apelos à revolução mundial… De facto, não estamos em 1917…
Entre a “revolucionarite” dogmática, que mantém a chama acesa na capela à espera do dia da salvação, e um pragmatismo cínico que afunila os horizontes do possível, há todo um espaço em que nos podemos mover para construir alternativas e alterar a relação de forças. Esse é o espaço em que tem caminhado o governo e sociedade Venezuelanas.

Notas finais

Num texto desta natureza é impossível desenvolver com detalhe todos os tópicos em discussão, antes de mais, faço referência a alguns deles que são focados no texto, mas poderiam merecer mais destaque: O papel dos media; a questão do petróleo; a “deriva” autoritária. Há no entanto uma razão pela qual não o fiz, este é um texto escrito a pensar, sobretudo, nos militantes do BE e “malta” de esquerda, portanto pressuponho que certo tipo de informação e discussões já esteja consolidado. Não fosse assim o tom e questões abordadas poderiam variar um pouco.
Para finalizar focarei dois aspectos da experiência Bolivariana em curso que nos poderão ser muitíssimo úteis. O primeiro prende-se com a recusa de sectarismos, preconceitos e o ecletismo das referências. Muitas vezes olhamos para o Bloco como um exemplo de superar discordâncias acessórias e de como é possível congregar esquerdas desavindas, bom, o facto é que se olharmos para o caso Venezuelano (e na América Latina há outros exemplos, e não me refiro à experiência falhada do PT…) vemos como foi possível juntar um pólo anti-sistémico, refundador da república, com mais de 20 partidos e movimentos sociais. Também do ponto de vista ideológico/histórico há vida para além das referências/experiências marxistas, de onde menos se espera podem surgir novos projectos portadores de grande potencial de transformação social. Quem é que há quinze anos adivinharia que fosse possível o que se está a passar hoje em dia na Venezuela?
O segundo aspecto que queria focar tem haver com a base social que sustenta o processo e a forma como está organizada. Os avanços político-socio-económicos em direcção ao proclamado socialismo do século XXI e a derrota dos golpes direitistas só foram possíveis porque o estado bolivariano é apoiado e, também, pressionado por movimentos sociais de base. Muitos deles com raízes no período pré-chavista, mas que têem, graças às políticas e contexto gerados pelo governo, ganho cada vez mais protagonismo. A questão é que a coluna vertebral desses movimentos não é o chamado “trabalho organizado”, de facto, as burocracias sindicais corruptas fizeram parte da fronda golpista. Claro que se estão a organizar novos sindicatos desligados das velhas estruturas comprometidas com a oligarquia e que houve e há ocupações de fábricas, conjuntamente com colectivos que nos locais de trabalho impulsionam a “Revolução”, mas não é em torno do trabalho que se polarizam as forças que sustentam o Bloco Bolivariano. A sua força vem das organizações de bairro, organizadas em torno da comunidade. Num país em que o sector informal da economia tem o peso que tem, num mundo em que o local de trabalho já não é o centro da vida, o normal (e desejável? possível?) é que assim seja.
Espero que com este texto tenha dado algum contributo no sentido de esclarecer muitas das dúvidas que surgem quando discutimos este original processo, espero também que dê alguma ajuda à nossa praxis política quotidiana e enriqueça a discussão em torno dos rumos a seguir pelo nosso movimento. Se assim for já terá cumprido o seu objectivo.

Quero concluir com uma citação de Simón Bolívar: “O sistema de governo mais
perfeito é aquele que produz a maior soma de felicidade possível, a maior soma de
segurança social e a maior soma de estabilidade política”. Este é o programa, creio
eu, do presidente Chávez; e considero que é um programa que desafia a
mundialização, um programa duma modernidade e exemplaridade radical.[27]


Bibliografia

As Missões Bolivarianas, Ministério da Comunicação e Informação do Governo Bolívariano da Venezuela

Um Homem, um povo, Marta Harnecker

Sites

www.zmag.org
www.venezuelanalysis.com
www.minci.gob.ve
www.aporrea.org
www.marxist.com
www.internationalviewpoint.org
newleftreview.org
[1] Começar de Novo
[2] As Missões Bolivarianas Ministério da Comunicação e Informação do Governo Bolívariano da Venezuela.
[3] Os gigantescos protestos na primavera de 2003, antes da invasão do Iraque, não podem ser consideradas como, apenas, uma manifestação do fenómeno alter-globalização.
[4] Tariq Ali em entrevista a 22 de Julho de 2004 a Venezuelanalysis.com
[5] desde as conquistas socias à superação das várias tentativas de desestabilização lançadas pela reacção, incluindo um golpe de estado!!!
[6],7 Hugo Chávez em entrevista com Marta Harnecker
[7] A Look at the Pre-Chavez Electoral System in Venezuela and Recent Reform by Olivia Burlingame Goumbri; September 14, 2006
[8] Hugo Chávez em entrevista com Marta Harnecker
[9] Nessas eleições Chavés também concorreu contra uma ex-Miss Universo…
[10] As Missões Bolivarianas Ministério da Comunicação e Informação do Governo Bolívariano da Venezuela.
[11] Hugo Chávez em entrevista com Marta Harnecker
[12] Empresa Petrolífera do Estado Venezuelano
[13] Excepção feita ao entusiasmo mostrado pela secretaria de estado Norte-Americana
[14] As Missões Bolivarianas, Ministério da Comunicação e Informação do Governo Bolívariano da Venezuela.
[15] José Cademártori, economista chileno, membro do governo de Salvador Allende
[16] Las Misiones Sociales Venezolanas como mecanismo para erradicar la pobreza, Dip. Victor Chirinos Vicepresidente de relaciones interinstitucionales del grupo parlamentário venezolano no Parlatino
[17] Ver o artigo: Hugo Chávez and RCTV Censorship or a legitimate decision? De Salim Lamrani publicado no zmag.org
[18] Selma James, coordenadora da Marcha Mundial das Mulheres. Inglaterra
[19] Quem não se lembra do gutural, mas absolutamente incisivo grito, ALCA ALCA al Carajo! Proferido em Buenos Aires durante a cimeira das Américas?
[20] Título do novo livro de Tariq Ali sobre Venezuela, Cuba e Bolívia.
[21] As Missões Bolivarianas, Ministério da Comunicação e Informação do Governo Bolívariano da Venezuela.
[22] Aló Presidente Nro. 249, Elorza, estado Apure; 19 de marzo de 2006
[23] Hugo Chavéz
[24] Neste sentido vale a pena reflectir sobre influência da morte de Durruti no desenrolar da Revolução Espanhola
[25] “La revolución es un instrumento para lograr fines mayores: la independencia, el desarrollo integral, el progreso social, el desarrollo de una nueva sociedad”.
Hugo Chavez, Activación de la Planta Termoeléctrica “Pedro Camejo”,Valencia, Edo. Carabobo; 21 de marzo de 2006
[26] Hugo Chavez Inauguración del Centro Médico de Diagnóstico de Alta Tecnología “10 de Marzo” La Guaira, 23 de marzo de 2006
[27] Ingnacio Ramonet, jornalista francês. Le Monde Diplomatique